domingo, junho 20, 2010

Trechos - parte dois

“-O que é que estamos fazendo aqui? – indaguei ofegante com o estômago se revirando de enjôo.
-Sente comigo, Amir agha. – disse ele sorrindo.
Na verdade, me deixei cair ao seu lado e me estiquei em um pedacinho de chão coberto de neve, quase sem fôlego.
-Estamos perdendo tempo. Não viu que a pipa está indo para o outro lado?
Hassan trincou uma amora.
-Está vindo pra cá. – respondeu.
Eu mal podia respirar, e ele nem parecia cansado.
-Como pode saber? – perguntei.
-Eu sei.
-Como?
Ele se virou para mim. Algumas gotinhas de suor escorriam de sua cabeça raspada.
-Já menti para você, Amir agha?
De repente, resolvi implicar com ele.
-Sei lá. – respondi. – Já?
-Mil vezes comer cocô! – exclamou indignado.
-De verdade? Você faria isso?
Ele me lançou um olhar desconcertado.
-Faria o quê?
-Comer cocô, se eu mandasse. – respondi. Sabia que estava sendo cruel, como naquelas vezes em que debochava dele quando não conhecia uma palavra qualquer. Mas havia algo de fascinante, embora de um jeito doentio, em implicar com Hassan. Era um pouco com brincar de torturar insetos. Só que agora, ela era a formiga e eu é que estava segurando a lupa.
Ele ficou me encarando por um bom momento. Estávamos sentados ali, dois meninos embaixo de uma cerejeira e de repente, nos olhávamos, olhávamos de verdade. (...)
-Se você mandasse, faria sim. – disse ele afinal, olhando bem para o meu rosto. Baixei os olhos. Foi aí que descobri como é difícil olhar diretamente nos olhos das pessoas como Hassan, essas pessoas que dizem sinceramente o que pensam. – Mas fico imaginando... – acrescentou ele. – Será que algum dia você me mandaria fazer ima coisa dessas, Amir agha?
E com isso, Hassan me propôs um pequeno teste: se eu ia provocá-lo, desafiando a sua lealdade, ele ia fazer o mesmo, pondo à prova a minha integridade.
Adoraria não ter começado aquela conversa. Dei um sorriso forçado.
-Não seja idiota, Hassan. Você sabe muito bem que eu não faria isso!
Ele também sorriu. Só que o dele não parecia forçado.
-Eu sei. – disse.
E esse é o problema das pessoas que são sinceras: acham que todo mundo também é.
-Lá vem ela. – exclamou ele apontando para o céu. Levantou-se e deu uns poucos passos para a esquerda. Olhei para cima e vi a pipa rodopiando na nossa direção. Ouvi correria, gritos, em monte de outros caçadores que se aproximavam. Mas estavam perdendo seu tempo. Porque Hassan ficou parado ali, de braços abertos, sorrido à espera da pipa. E que Deus – se é que Ele existe – me cegue se não for verdade que a pipa caiu exatamente em seus braços.”
'The kite runner – Khaled Hosseini

“No carro, janela de vidro arriado, a ventania fresca da noite embaraçando os seus cabelos desfeitos, imaginou Cássio ali junto dela, mãos entrelaçadas a dizer que o esquema de avisos estava pronto: uma cruz de giz na parede queria dizer que o encontro estava marcado para aquela mesma tarde, seis horas, numa das vitrinas da Galeria Menescal; um círculo traçado no mesmo lugar queria dizer que naquele dia seria impossível, o remédio seria aguardar um novo sinal no dia seguinte.
Então viu, quando carro entrava na Avenida Atlântica, o facho poderoso de luz de um dos holofotes do Forte de Copacabana riscando o céu e explodindo contra as nuvens baixas que pronunciavam um dia de pouco ou nenhum sol. Mas a luz desapareceu logo a seguir e ela se perguntou quem estaria àquela hora da madrugada a manejar o facho de luz, talvez um soldado de guarda mandando um sinal de amor para alguém que cuidava do céu numa ruazinha modesta de Madureira e que o sinal estaria a transmitir uma mensagem cifrada, estou vivo, penso em você, lhe amo.”
‘É tarde para saber – Josué Guimarães.

“Havia na irmã algo de muito sedutor, mas essa sedução também era perigosa, porque Janey inevitavelmente conseguia lesar qualquer pessoa que se envolvesse com ela. Era um fato do qual Janey parecia felizmente inconsciente, e havia vezes que Patty não conseguia deixar de desejar que alguma coisa rui acontecesse a Janey, e ele aprendesse a lição, embora não tivesse certeza de que lição seria. E aí se sentia culpada, porque Janey era sua irmã, e não se deve pensar essas coisas das irmãs.

(...) Zizi era tão atraente que era impossível para uma mulher estar perto dele e não pensar em sexo. Mimi olhou com atenção o rosto de Zizi, mais de perto. Ele não tinha nenhum ângulo ruim: quanto mais se olhava para ele, mais bonito ele ficava, de forma que a pessoa acabava sentindo que não era humano de verdade, mas uma criatura feita por Deus para um planeta mais perfeito. Janey, é claro também era deslumbrante, mas só isso não fazia deles um casal perfeito.

Enquanto isso, ele havia descoberto que a jovem à sua esquerda literalmente não sabia falar – pelo menos em inglês – e do que conseguia deduzir das poucas palavras em espanhol que reconheceu com o que sabia dos tempos da escola, tinha acabado de chegar de alguma fazenda do Brasil para ser modelo na campanha da Victoria’s Secret.

-Irina... se... enganar? Não? – disse a brasileira chamada Conchita. Mal conseguia falar inglês, e chorava a pelo menos uma vez por dia, chamando sua ‘mamãe’.”
'Janey Wilcox – Alpinista Social – Candace Bushnell

“(...) A alegria não terminaria nunca, e nós tampouco, porque somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba.

Bem-aventurados os bêbados, porque eles verão Deus duas vezes.
A sorte não ajuda quem não ajuda a ajudar

O sistema/3
Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a ser fodedor ou fodido, mentidor ou mentido. Tempos de o que me importa, de o que se há de fazer, do é melhor não meter, do salve-se quem puder. Tempo dos trapaceiros: a produção não rende, a criação não serve, o trabalho não vale.

No rio da Prata, chamamos o coração de bobo. E não porque se apaixona, o chamamos de bobo porque trabalha muito.

O baixo astral
Enquanto dura o baixo astral perco tudo. As coisas caem do meu bolso e da minha memória: perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. E não sei se será mau-olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que encontro, não encontro o que busco, e sinto medo que numa dessas distrações acabe deixando a vida cair.

A pálida
No café da manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer em nada, em ninguém. As palavras não se parecem àquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou de ser chamado.

Para que a gente escreve, se não é pra juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação mos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.

O medo seca a boca, molha as mãos e mutila. O medo se saber nos condena à ignorância, o medo de fazer nos conduz à impotência."
'Eduardo Galeano

"Cultivavas o vício da paixão com um método implacável. Corrias em contra-relógio. Procuravas a imobilidade de um tempo-pedra que já era o teu. ... Nos breves dias em que vivias desapaixonada, tornava-te impossível. Nada te entusiasmava.

Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus.

Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim.

Passei a vida inteira a querer interpretar-te – oh! Delicioso desperdício! – e nem sequer era por amor.

Eu era sempre o que parecia, tu ias sendo tudo o que parecias. Creio que por isso fomos ta íntimos – e por isso nos afastamos tanto.

Toda? Falta-me alguém que não és tu.

Há tantas coisas que nunca te disse – e dizias tu que eu falava demais. ... Em vida, sussurrava: não te perdoo o que não soubeste saber de mim. Este noante revela-me a verdade invingada: não me perdoo o que não soube verter-te de mim.

Eu pensava que queria mudar o mundo, eu pensava que tu apenas querias mudar de cenário. Eu pensava que pensava – por isso descobria tão pouco do impensável de nós.

... e aprendendo demasiado tarde o que não fui capaz de ver.

Julgava possuir todas as chaves do sofrimento. Chamavas-me presunçosa, talvez tivesses razão. Não há entendimento para o sofrimento do outro. "
'Fazes-me falta – Inês Pedrosa

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